Borderline e a Identidade
Na psicanálise, o “self” representa a totalidade da psique e a essência do ser, englobando o consciente e o inconsciente. É o centro da personalidade e da identidade, que busca a integração e harmonia dos elementos psíquicos para alcançar uma vida plena e autêntica.
O “self” pode ser representado de diferentes formas, como:
- o Self como unidade total da psique (envolvendo consciente e inconsciente), especialmente na teoria de Carl Jung;
- ou como representações contidas no id, ego e superego, uma visão mais restrita proposta por Heinz Kohut, que se refere a imagens e conteúdos mentais, e
- em outras abordagens, como a de Winnicott, descrevem o verdadeiro self como um centro vital e espontâneo, uma força da natureza que se expressa através do corpo e da ação no mundo.
Há também representações como:
- O self como autoconsciência: Em algumas teorias, o Self é visto como sinônimo de autoconsciência e autoexpressão, que se desenvolvem no ego através do controle e expressão das sensações.
- A congruência entre Self e autoimagem: Uma pessoa saudável possui uma imagem do self congruente com a realidade do corpo e da experiência, sendo o oposto uma incongruência que pode levar a distúrbios de personalidade.
Função e Importância do Self
- Totalidade: O Self representa a totalidade da psique, unindo todas as facetas da personalidade, consciente e inconsciente.
- Integração: É uma força integradora que busca o equilíbrio e a harmonia entre os diversos componentes da psique.
- Essência: É a verdadeira essência do indivíduo, transcendendo as limitações do Ego e buscando uma conexão mais profunda com essa essência.
- Autenticidade: Contribui para a formação de uma identidade autêntica, que se relaciona de forma saudável com o mundo e consigo mesmo.
- Processo de Individuação: Na perspetiva de Jung, a busca por uma conexão mais profunda com o Self é o que ele chamou de individuação, um processo contínuo de desenvolvimento e integração que leva a uma vida mais plena e significativa.
Talvez um borderline se sinta assim em relação ao mundo. Seu self ainda não está constituído, a pele pouco limita o “nada de fora e o quase nada de dentro”. O nada de fora pode ser representado pela dificuldade do borderline de enxergar o outro, e o quase nada de dentro demonstra o problema de identidade que ele vive.
Por outro lado, há suficiente diferenciação entre representações do self e representações do objeto para permitir a manutenção de fronteiras do ego, delimitação clara entre o self e os outros.
Kernberg (1989) salienta a difusão de identidade como a “falta de integração do conceito de self e de outros significativos”. Essa integração insuficiente é responsável, segundo Kernberg (1984), pela
“experiência subjetiva de vazio crônico, autopercepções contraditórias e percepções empobrecidas dos outros. A difusão de identidade aparece na incapacidade do paciente de transmitir a existência de interações significativas com outros, o qual não consegue, então, empatizar com a concepção de si mesmo e dos outros em tais interações”.
O paciente borderline não conseguiu constituir sua subjetividade, pois não teve possibilidade de experimentar o holding adequado para a sua constituição.
A subjetividade é entendida como a constituição única e singular do indivíduo através do inconsciente, da linguagem e das interações sociais. Ela engloba as experiências pessoais, os desejos reprimidos e os conflitos psíquicos que formam a personalidade, diferenciando cada pessoa das outras e moldando sua maneira de pensar, sentir e agir no mundo.
Na psicanálise, holding (do inglês, “segurar” ou “sustentar”) é um conceito de Donald Winnicott que descreve a função essencial da mãe ou do cuidador em proporcionar um ambiente físico e emocionalmente seguro, estável e responsivo às necessidades do bebê. Esse ambiente acolhedor permite o desenvolvimento psicológico saudável da criança, permitindo que ela se sinta segura para explorar o mundo e desenvolver um senso de si.
Por não ter tido uma experiência intersubjetiva satisfatória com o ambiente, não desenvolveu a capacidade para estar só e não conseguiu tornar-se um sujeito independente da participação da subjetividade do outro.
Por conta disso, sua existência é perturbada por invasões do ambiente que interrompem o seu continuar a ser, produzindo uma ameaça de aniquilação.
Nesse clima, não é fácil estar com sua identidade constituída. Daí a necessidade que tem da presença, numa relação anaclítica, de alguém que lhe proporcione condições de acesso à sua subjetividade.
O Ideal do Ego é a representação interna de como desejamos ser, um padrão de perfeição que internalizamos de pessoas idealizadas, como os pais, e das expectativas da sociedade.
O superego é a instância moral da personalidade, responsável por incorporar e (internalizar) os valores sociais, normas e proibições adquiridos da família e da sociedade. Ele atua como um “juiz” ou “censor” que inibe os impulsos do Id, gera sentimento de culpa quando as regras são violadas e impulsiona o indivíduo a buscar a perfeição através do Ideal do Ego
A sua questão da identidade, complica-se também porque o Borderline está mais influenciado pelo ideal do ego que pelo superego. Não que o superego não exista no borderline, mas o ideal do ego é fundamental na composição de sua personalidade.
Com isso, ele se debate com a questão de se relacionar com figuras idealizadas com as quais mantém uma relação de admiração e desvalorização, sendo-lhe penoso reconhecer seus próprios limites e capacidades. Em razão disso, não conhece seu próprio potencial, pois seus parâmetros são sempre ideais inalcançáveis; então, termina por não se conhecer, atrapalhando mais ainda suas possibilidades de apropriar-se de sua identidade.
Como o borderline não tem sua subjetividade constituída e, além disso, é influenciado pelo ideal do ego, a tendência é não ter sentido em sua vida, estar sem objetivos definidos, daí estar em geral entediado, sem rumo, com uma sensação horrível de vazio constante. Estes sintomas são comuns, tornando sua vida um lugar tenebroso de habitar, pois a aridez de uma vida sem sentido é algo que explica o sentimento frequente (às vezes diário) de suicídio.
Manifestações da perturbação de identidade
A instabilidade de identidade no Transtorno de Personalidade Borderline se manifesta de várias formas, influenciando emoções, comportamentos e relacionamentos.
- Sentimento crônico de vazio: Uma das sensações mais descritas é o sentimento persistente de vazio e falta de um “eu” sólido, o que pode levar a um esforço para preencher esse vazio com comportamentos impulsivos.
- Autoimagem fragmentada: A autoimagem não é coerente e pode mudar drasticamente de acordo com o estado emocional do momento. O comportamento e as experiências internas da pessoa não são consistentes, dificultando a construção de uma identidade estável.
- Mudança de valores e metas: As opiniões, objetivos e aspirações podem mudar de forma imprevisível. A pessoa pode adotar repentinamente diferentes crenças, planos de carreira ou escolhas pessoais, refletindo a falta de um núcleo de identidade definido.
- Instabilidade interpessoal: A autoimagem distorcida afeta a forma como a pessoa se relaciona com os outros. A percepção sobre as outras pessoas pode mudar rapidamente, oscilando entre idealização e desvalorização, o que prejudica a estabilidade dos relacionamentos.
Causas e impactos na vida
A perturbação da identidade está associada a fatores como instabilidade emocional e impulsividade.
- Instabilidade emocional: Mudanças intensas de humor afetam diretamente a percepção de si mesmo. Um sentimento de euforia pode levar a uma visão de si mesmo como poderoso, enquanto a depressão seguinte pode resultar em autodepreciação intensa.
- Comportamentos impulsivos: Gastos excessivos, abuso de substâncias ou sexo de risco são algumas das áreas onde a impulsividade pode se manifestar, buscando aliviar o desconforto causado pelo vazio interior.
Embora desafiadora, a instabilidade da identidade pode ser tratada com a ajuda de profissionais de saúde mental.
- Terapia: ajuda a pessoa a desenvolver habilidades para regular as emoções, tolerar o sofrimento e melhorar os relacionamentos.
- Fortalecimento da identidade: A terapia visa ajudar o indivíduo a construir uma identidade mais coerente e estável, por meio da aceitação de si mesmo, mesmo em meio à instabilidade emocional.
- Apoio da família: A educação e o apoio da família são essenciais, pois a incompreensão por parte das pessoas próximas pode agravar a instabilidade do paciente
Bibliografia
KERNBERG, O. (1989) Psicoterapia psicodinâmica de pacientes borderline. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
Borderline/Mauro Hegenberg. – 7. ed. – São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013. – (Coleção Clínica psicanalítica/dirigida por Flávio Carvalho Ferrar.

